Ana Cláudia Santos é poeta residente da Casa Florbela Espanca, autora de Meia-Vida (2020, independente) e O Espectro (2024, Edições Casa Florbela Espanca), curadora da antologia Fábricas de Novas Almas (2023, Caminho das Palavras), host do Multiversos (NiT FM) e produtora dos eventos LUA e Sala Incomum. Venceu o concurso New Talent 2021 (TVI, NiT).
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Poema-Ponte: três poemas de Ana Cláudia Santos
A POESIA/FÁBRICAS DE NOVAS ALMAS
Para os meus poemas, não existe interpretação,
Apenas a evidência da existência pura,
E dos pensamentos de outros reinos
Que dormem dentro do meu núcleo-cardíaco.
Talvez numa noite, por sorte,
Os meus poemas se tornem necessários
E respondam a pesquisas impossíveis,
E quem sabe, aí, eles se tornem inevitáveis.
A poesia é o auge do encanto
Pelo temporário sem fim.
O erro digno da escrita padrão,
A forma confusa do raciocínio.
A má interpretação do quotidiano
E a ilusão límpida do meu caos.
A tradução das minhas ausências
E da perfeição de tudo o que existe.
O eterno detalhe das minhas ideias,
Para sempre irracionais reproduzir em letra.
Os poemas são fábricas de novas almas,
Filtros para distinguir os limites da realidade,
Que provam, tenho a certeza,
Que não há nenhuma dimensão que não tenha poesia.
in O Espectro, p. 9
BENAVENTE/QUINTA DO PORTÃO DE FERRO
Os ecos que ouvia aqui em casa
Em dezembro e janeiro,
Nunca os vou voltar a ouvir assim em nenhum espaço.
Dentro destas divisões
Outras pessoas vão escrever os seus fados,
Assim como habitei com os meus.
O meu fantasma
Vai assombrar as paredes que aqui permanecem independentes do meu corpo.
O que sobrevivi não se evaporou dos quartos,
Corporificou-se maciçamente nos suportes da casa.
Só eu conheço o fenómeno de segurança e paz
Que se descobre à noite
Ao olhar sossegada pela janela do meu quarto
E do cheiro daquilo que não é cidade,
Da fragrância inodora e límpida
Dos impulsos das árvores
E da aragem calma dos sopros do ar.
Vou transportar o olhar da janela do meu quarto
E a recordação de como o som desta chuva é diferente.
Aqui os cânticos dos temporais são mais sólidos, mais seguros.
in O Espectro, p.21
O MEU REINO NÃO É DESTE MUNDO
Posso habitar aqui
A ser, fazer (tudo - o meu melhor),
A trabalhar (em tudo):
Mas não sou de cá.
Sou de um endereço que esqueci.
Sem me lembrar,
Lembro-me que esse lugar era mais vasto que as muralhas depois do espaço.
Era silencioso, pacífico e longínquo do tempo.
Lembro-me, constante,
De um castelo gigante
Feito de glaciar e diamante
Suspenso em terra flutuante
E em perfeição delirante.
Enquanto espero pelo meu regresso
A única alternativa que encontro
É viver no simulacro a que tenho acesso;
E misturar-me,
Falsificar a minha vida toda,
Rir em encenação com as pessoas,
Dançar com as mentiras do quotidiano,
Acordar, dormir, ver paisagens, investigar a natureza,
Experimentar novos sabores, ver novas imagens,
E criar personagens para aumentar a minha riqueza.
(Poema inédito)
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Poema-Ponte é uma coluna quinzenal de poesia Luso-Brasileira, com curadoria a cargo do poeta português Pedro Albuquerque e edição do poeta brasileiro Dee Mercês. Nesta coluna, estão sendo apresentados poetas emergentes ou com trajetórias mais consolidadas de ambos os países.