Julia Peccini é natural de Niterói, no Rio de Janeiro e vive em Portugal desde 2018. É autora dos livros Aqui cabe um poema (2021, edição de autor), Nem só de amor vive Afrodite (2022, Editora Philos, Semifinalista do Prêmio Oceanos 2023) e Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua (2023, Editora Urutau).
***
Poema-Ponte: três poemas de Julia Peccini
FALTA-ME TINTA
vou te dizer
que o tecido
é como um corpo
em cima de um corpo
que como receita
de baixo pra cima
rufa em terra
ventania
vou te dizer
que nos últimos 100 anos
precisei de um par de óculos
pernas e raízes
cresço seminua
e já nem sinto mais diferença
da matemática básica
que domina a palavra corpo
vou te dizer
que passeio pela boca
só para sentir
lamber a dor em ponta de lápis
quando se trocam
olhares
vou te dizer
que sinto cor sair
ao som de beata
quando em comunhão fria
a noite é mais clara que o dia
e pela primeira vez
nunca amanheci tão livre
vou te dizer
que se eu vir rasgar
exponho
sobrevivente de água viva
sinto minhas linhas listras
como se fossem bichos a arder
e faço-me desprender
do riso
da valsa
e do só êxtase
de quebrar o espelho
que permanece oculto
poderia
desentranhar a vida inteira
fazer teia
mas falta-me tinta
e deixo-me molhar
com afonias
de não saber.
in Nem só de Amor Vive Afrodite, p. 27
ÍNTIMO
o essencial nasce
como se estivesse
cansado
um senhor abaixa a cabeça
tenta fechar o zíper
não vê o fecho
caminho longo
inclina o pescoço
estende as mãos uma prece
se cair que seja
na primeira
queda.
in Mergulhar na Pele, Desoxidar a Língua, p. 46
É PROIBIDO NASCER NO INÍCIO
as crianças passam a hora do
intervalo com camisolas de
cores diferentes
será que o descentramento do verso
saiu de dentro da boca
de uma criança?
será que a criança na boca
é uma cor
mesmo sabendo que é
proibido à boca nascer
antes do pé?
será que a cor da boca
é uma criança?
em que
camisola
se diz o verso?
as palavras ainda tem
sabor?
hoje é proibido
ser criança
e eu quero nascer no início.
(Poema inédito)
***
Poema-Ponte é uma coluna quinzenal de poesia Luso-Brasileira, com curadoria a cargo do poeta português Pedro Albuquerque e edição do poeta brasileiro Dee Mercês. Nesta coluna, estão sendo apresentados poetas emergentes ou com trajetórias mais consolidadas de ambos os países.