Com poemas que vão do íntimo ao universal, o poeta português Nuno de Sousa é o destaque da coluna luso-brasileira da Geração de 20. Confira três de suas obras, incluindo um poema inédito.
A coluna Poema-Ponte, farol da poesia luso-brasileira na Geração de 20, apresenta nesta edição a obra do poeta português Nuno de Sousa. Nascido em Lisboa nos idos de 79, publicou sal e de corpos frementes (2019), e irei sobre o silêncio (2022). Destaca-se a Menção Honrosa no Prémio Literário Pedro da Fonseca (2022) com o conto o ciclo e o prêmio O que é ser Português da Sociedade Histórica da Independência de Portugal (2022).
Poema-Ponte: três poemas de Nuno de Sousa
Esse dia saí de casa para viajar
Esse dia saí de casa para viajar
saí com o que tinha à mão
a ideia dos pés na calçada
com a simplicidade com que abro os olhos
saí
para viajar
algures para lugar nenhum
decidi
sair de casa
ir viver escrever e contar a vida
saí nesse dia
viajei e não mais voltei
hoje sou um estranho
aquele calejado a quem abres a porta
alimenta com a caridade que ainda reside
o mundo roda e todos esquecem
eu esqueci
quem era
quando nesse dia saí de casa para viajar
in irei sobre o silêncio, 2022, p.50.
Talvez em ser mais ninguém
Talvez em ser mais ninguém
eu em mim seja alguém
in irei sobre o silêncio, 2022, p.57.
(Sem título)
gritaram do fundo da rua
que a ignomínia era um espelho partido
severo de arestas cortantes
aonde a cara se reflecte dual
raspada dos verbos que não afloraram aos lábios
gritaram com voz ríspida
da porta dos prédios destruídos
a pólvora e a dinamite pousando num inspirar
que não se repete não repetirá
ficou expectante de amanhã
uma nuvem negra por cima das crateras
que são sangue-violência espalhado na roupa
e a guerra entranhada nos poros
estridentemente gritaram
proferiram palavras que se viram solitárias
escorrendo no metal dos tanques e camiões
embebendo-se no cheiro do gasóleo e dos corpos
apodrecendo aos pedaços nas lagartas das máquinas
que rodam o corpo rodam o cano da arma gigante
procura outro alvo
és o alvo somos alvo
o país é um alvo
a nacionalidade é um alvo
a cor da pele é um alvo
a fé é um alvo
o nome é um alvo
a escolha do amor é um alvo
a arbitrariedade de nascer assim ou assado
é um alvo
a escolha qualquer escolha
é-um-alvo
tudo é um alvo
é um alvo
(o espelho partido quebrou-se em miríades de fragmentos
as caras deixaram de se ver)
gritaram algures
ninguém ouviu
gritaram novamente
ninguém ouviu
nem ninguém respondeu
um vento quente varreu a terra negra-queimada
uma poeira frágil arvorou dos montes ressequidos do calor
o grito calou-se
as armas calaram-se
não restavam mãos para operar
dedos para disparar
vozes para mandar
riqueza-terra-vidas para conquistar
os gritos calaram-se
todos os gritos se calaram
para sempre
restava apenas morte varrida pelo vento
passando por cima dos alvos adquiridos
todos somos um alvo
até ao momento em que unidos escolhamos
não mais procurar alvos
(Poema inédito)
A Poema-Ponte é uma coluna quinzenal dedicada à poesia luso-brasileira, com curadoria do poeta português Pedro Albuquerque e edição do poeta brasileiro Dee Mercês. A cada edição, a coluna apresenta poetas emergentes ou com trajetórias mais consolidadas de ambos os países, fortalecendo o intercâmbio literário entre Brasil e Portugal.