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Auryo Jotha: a voz da literatura piauiense que quebra convenções

Auryo Jotha: a voz da literatura piauiense que quebra convenções

Auryo Jotha, escritor piauiense radicado no "pé de meia" chamado Piauí, vem conquistando reconhecimento no cenário literário com suas obras curtas e impactantes. Vencedor do Prêmio Odisseia de Literatura em 2022 e do Prêmio Wattys, com publicações em diversas antologias e parte do coletivo MotimBooks, ele desafia a ideia de que histórias concisas não podem ser profundas.


Com um estilo único e contemporâneo, Auryo extrai o melhor das expressões do dia a dia, criando narrativas que ressoam com a experiência de ser nordestino presentemente, longe de qualquer estereótipo. Seu conto "A feira do troca-troca onde um filhote de onça vale um radinho de pilha", sobre um casal que precisa recuperar suas cabeças perdidas, é um exemplo marcante de sua habilidade para contar histórias com criatividade e humor. Nesta entrevista, ele compartilha seus pensamentos sobre literatura, regionalidade e a importância de quebrar convenções. Prepare-se para se inspirar com a visão singular desse talentoso contista.


Como você costuma definir a sua criação literária?


De supetão, responderia que três elementos caracterizam minha obra: ficção especulativa, regionalista e folclórica. Tenho problemas com cada uma dessas expressões.

A primeira é um termo guarda-chuva usado para abranger fantasia, ficção científica e horror. Em algumas histórias, eu... não estou especulando em cima da realidade; às vezes é só o nosso cotidiano. Não tenho culpa se, no Piauí, temos macacos que amolam facas ou papagaios que avisam quando a polícia chega (e são "presos" por causa disso).


Minha questão com "regionalismo" é a de sempre. É uma expressão muito focada no eixo Rio-São Paulo, que nos coloca em uma posição de ser "os outros", "os exóticos". Já "ficção folclórica" é um assunto delicado; o termo "folclore" causa muitas discussões, prefiro evitá-las.


Outros três elementos que permeiam minha criação literária são: 1. narrativas curtas, 2. mistura de gêneros/nichos, 3. mexer com o formato e com a estrutura do texto.


Você é mais focado em criar histórias curtas. Por quê?


Tenho várias respostas: 1. Concisão, dizer muito com pouco é algo que me encanta. 2. Reescrita, os contos me permitem revisar e refinar com mais facilidade o texto e a trama. 3. Experimentalismo, em narrativas curtas, consigo usar técnicas, vozes e formatos diferentes; isso, em uma obra mais longa, cansaria rápido quem está lendo, ou eu teria que abandonar o recurso depois de poucas páginas e voltar para a prosa convencional. 4. Sou do contra, hoje a tendência são romances, então vou para os contos, apesar de que... há dez anos, sagas de livros, calhamaços, eram muito populares; nos últimos anos, livros únicos e mais curtos, com cerca de 200/300 páginas, estão na moda. Quem sabe se, continuando assim, voltamos à era de ouro dos contos no Brasil?


Minha quinta resposta talvez seja a principal razão de eu escrever narrativas curtas: eu penso a partir de cenas. Já vi pessoas falando que, no princípio, eram as personagens e a história se cria em torno delas, ou que a criação se deu com a trama e depois foi se pensando nas personagens para viverem aquelas ações, ou se prepara todo o worldbuilding primeiro e depois se decide o que colocar nesse cenário.


Eu começo só com fragmentos, são várias cenas curtas com personagens, cenário e ações, mas ainda são coisas soltas. Escolho quais dessas cenas funcionam juntas e, depois, guio a situação para ir de um ponto A até o ponto B, ou seja, ir de uma cena a outra. Por isso, digo que escrever é criar desculpas, é criar o que há (motivos, situações, consequências) entre essas cenas que dão sentido para a história.


Antes de seguir com a entrevista: não acredito no conto como um mero treino para se escrever um romance, um livro com mais fôlego e mais sério; não, são coisas diferentes e, como tal, exigem capacidades diferentes.


Várias obras suas se caracterizam por uma linguagem coloquial e muito próxima do modo de falar comum. O que esse recurso representa?


Falaria que é para gerar uma proximidade com quem lê, mas me lembrei de que há pessoas largando livros se aparecer um "pra" no texto... Então, minha resposta errada seria: como tem gente que enche o saco com esse negócio de norma-padrão dentro da literatura, eu me divirto quebrando essas regras do português escorreito. Querem colocar a literatura num pedestal, mas, pra mim, arte, antes de qualquer coisa, é revolta; não faz sentido ela ficar parada pro agrado e a contemplação apenas de uma parcela ínfima da sociedade.


Agora, uma resposta um pouco mais correta: esses elementos de "oralidade" estão nos meus textos para marcar de onde vim; essas palavras são minhas, são eu, as escuto, as falo, as escrevo.


Na sua opinião, como os estados nordestinos, tais como o Piauí, podem valorizar a própria literatura regional?


Aqui, a gente tem a ideia fixa de que, para fazer sucesso no Piauí, tem que primeiro ir para fora, ganhar fama lá e depois voltar. Creio que isso só resolveria se a intenção da pessoa for chamar a atenção de um grupo seleto de pessoas; se é só esses gatos-pingados que quer impressionar, ok, mas, para a grande maioria da população, essa pessoa continuaria no anonimato (isso falando de literatura).


Talvez uma solução seja ir às escolas, principalmente às de bairros periféricos. Quase todos os lançamentos de livros que vejo são à noite, em cafés na Zona Leste de Teresina (para quem é de fora, essa é a parte de "elite" da cidade); assim, fica difícil. Hoje (2024), a gente mal tem ônibus circulando; então, como/por que alguém atravessaria a cidade para ver um livro de um desconhecido?


Se autopromover é importante, a gente peca muito quando se fala em divulgação, mas (sempre um "mas") só o "auto" não basta; um autor sozinho não faz literatura (me desculpe a frase brega). Deixar o ego de lado e lutar com quem está do nosso lado talvez seja o mais importante nessa questão de "valorizar a própria literatura".


Seu conto “A feira do troca-troca onde um filhote de onça vale um rádio de pilha” repagina um ponto urbano de Teresina, capital piauiense, sob uma ótica fantástica. Como foi fazer essa adaptação?


Creio que não precisou de adaptação, nem de minha parte como escritor, nem de Teresina. Isso foi algo que, desde o começo, eu quis fazer: falar do Brasil ("canta a tua aldeia", para citar a frase de Tolstói); com o passar do tempo, fui só afunilando meus interesses, fui chegando mais e mais perto do meu quintal.


Também não vi dificuldades de imaginar Teresina como palco de uma ficção fantástica. Estamos na América Latina; nosso cotidiano já é encantado o suficiente para essas coisas não soarem estranhas.


Nem na literatura isso me parece deslocado, porque muitos dos clássicos piauienses mencionam nossas lendas/crenças/modos de vida. Se não me engano, os livros de Abdias Neves e de (nosso) Assis Brasil falam para ter cuidado com o Cabeça-de-cuia se for para a beira da água. No livro Rio subterrâneo, O. G. Rego de Carvalho coloca um bode preto invadindo uma casa; na hora, um espelho se quebra, e isso é entendido como a presença do diabo. É um absurdo tão longe da realidade assim? No meu bairro, tem um homem que passeia todos os dias às 6h da manhã com um bode na coleira; ou seja, essas coisas ditas estranhas/absurdas/fantásticas já fazem parte do nosso cotidiano.


Há, na história citada, uma mistura frenética de humor, ação e, de certa forma, drama, sem contar o elemento fantástico. Como e por que foi feita essa “vitamina” de nichos literários?


Isso acontece quando me empolgo com uma história. É uma "dica de escrita" comum de se ouvir por aí: pegue tropos/clichês de nichos diferentes do que você escreve/lê e os transponha para a história que está criando; veja como esses elementos reagem à mudança de ambiente.


Não é uma novidade pra mim. Star Wars, por exemplo, é um filme de samurai com western em uma space opera focada em magia (a Força). Essa "vitamina de nichos" está se tornando cada vez mais comum. Óbvio que separar os elementos daria vários contos, mas, juntos, eles são um respiro dentro do nicho da fantasia, que, às vezes, fica muito sufocado com tantas cópias de O Senhor dos Anéis.


Por fim, há algo a se saber sobre seu próximo lançamento ou demais projetos?

Meu próximo conto (ou noveleta, ou novela, como queiram chamar) vai ser sobre a lenda da Porca do Dente de Ouro, uma assombração urbana que corre à noite pelos bairros de Teresina. A história vai se passar nos anos 80 e tem como "nicho" da vez o "suspense", inspirado em Hitchcock.


Também pretendo fazer versões físicas dos meus contos, tudo de forma independente. O primeiro que escolhi foi Acalanto, uma história de terror sobre bicho-papão, nostalgia, medos, infância, memórias enterradas e familiares abusivos. É brincando com vários clichês do horror que eu meio que misturo o filme australiano The Babadook (2014) com o conto "Casa Tomada", de Cortázar.


E assim chegamos ao fim da nossa conversa, na qual exploramos a paixão de Auryo Jotha por narrativas curtas, a riqueza da cultura piauiense em sua obra e a ousadia de misturar gêneros e quebrar convenções. Se você se encantou com as ideias e a criatividade deste autor, não deixe de compartilhar esta entrevista e espalhar a riqueza da literatura regional!



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Sobre o entrevistador: Enzo Santana Macedo nasceu em Teresina–PI e passou sua infância entre Bahia e Maranhão. Seus contos foram publicados em revistas digitais renomadas, incluindo Aboio e Ruído Manifesto. Para saber mais sobre suas reflexões literárias e opiniões, ele pode ser encontrado no Instagram: @enzo_santana_macedo.


Edição: Dee Mercês.


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