Folheando a Hera: a complexidade polissêmica da "Via Negra Nº 4" de Roberval Pereyr
- Geração de 20
- 7 de mar.
- 4 min de leitura
Atualizado: 10 de mar.
Estimada pessoa leitora, em minha jornada pelas páginas da revista Hera, para esta edição da coluna, deparei-me com um poema que me convidou a uma profunda reflexão sobre identidade, a dinâmica de afirmação e negação e o enigma da palavra. "VIA NEGRA Nº 4", de Roberval Pereyr, intrigou-me desde o título. A palavra "negra", em aparente deslocamento, criou um enigma polissêmico que me convidou a desvendar suas possíveis interpretações. Permita-me compartilhá-los com você.
Mas antes, leia o poema:

O poema, de estrutura simples em versos livres, organiza-se em três estrofes. A repetição do verbo "dizem" no início de todas elas criou um efeito de coro, onde a voz coletiva parece construir a identidade do eu lírico, numa tentativa de afirmação. "Dizem todos que meus rastros / ficaram pelos caminhos / que eram rubros que eram vastos / nas estradas de setembro", ecoou a primeira estrofe, onde a grandiosidade do eu lírico é atestada por testemunhas. A segunda estrofe reforçou essa imagem, com a natureza se curvando diante de sua passagem: "Dizem: quando eu passava / as flores da beira da estrada / refugiavam-se nas matas: vastas / matas das estradas de setembro".
A repetição da expressão "estradas de setembro" ao final das duas primeiras estrofes chamou a atenção para a sinonímia entre "via" e "estrada", intensificando a imagem de um percurso, de uma jornada. Mas por que setembro? O mês específico permaneceu um enigma, sem pistas no corpo do poema. Seria uma referência a um momento pessoal do autor, a um evento histórico, ou apenas uma escolha sonora?
É na terceira estrofe, composta por um verso único, que o enigma se aprofundou: "Dizem, é o que dizem: eu não me lembro". O eu lírico distanciou-se da narrativa construída pelos outros, negando a posse de suas próprias memórias. Essa negação, mais do que simples amnésia, revelou-se como um ato de resistência, uma forma de afirmar que sua identidade não se resume ao que os outros dizem. Mas a estrofe também pode ser lida como uma ironia, uma forma de questionar a veracidade das memórias coletivas, como se o eu lírico dissesse: "Vocês dizem, mas quem garante que é verdade?". É nesse ponto que o intrigante deslocamento da palavra "negra" no título tornou-se ainda mais instigante.
A força do "não" na frase "eu não me lembro" é crucial para a compreensão da terceira estrofe. Ele marca uma negação ativa, uma recusa em aceitar a memória imposta pela voz coletiva. Não se trata de um simples esquecimento, mas de uma resistência à narrativa dominante. O "não" reafirma a autonomia do eu lírico, que declara sua memória como intransferível. Ao mesmo tempo, o "não" lança uma sombra de dúvida sobre a veracidade das memórias coletivas, sugerindo que elas podem ser questionáveis. A ironia se manifesta na quebra da expectativa criada pela repetição do "dizem", revelando a fragilidade da voz coletiva diante da individualidade que se nega.
Para compreendermos a complexidade dessa "via negra", precisamos explorar os significados que a palavra "via" carrega: caminho, estrada, percurso, meio, modo, maneira. "Negra", por sua vez, evoca a cor preta, a ascendência africana e, simbolicamente, o desconhecido, o oculto, o profundo. Juntas, "via negra" pode ser interpretada literalmente como um caminho escuro ou uma rota associada a pessoas negras. Metaforicamente, no entanto, a expressão ganhou contornos polissêmicos: um percurso de vida marcado por desafios, sofrimentos e superações, especificamente por pessoas negras; um caminho de reflexão sobre a própria existência; um espaço de questionamento das narrativas impostas; e, no contexto deste poema, um local onde a afirmação e a negação se encontram.
A aparente contradição entre a grandiosidade dos "rastros rubros" e a recusa do eu lírico criou uma tensão que me levou a questionar a natureza da identidade e da memória coletiva. A "via negra" tornou-se, assim, um espaço de ambiguidade, onde a afirmação e a negação se confundem. Seria essa via um local de memória ancestral, um caminho de resistência, ou um abismo onde as histórias se perdem?
A recusa do eu lírico em se apropriar da narrativa alheia, expressa no verso final, pode ser interpretada como um ato de resistência contra a objetificação da memória e a narrativa dominante. É uma forma de afirmar a própria voz e a própria versão da história, desafiando as convenções e as normas sociais.
A escolha de Roberval Pereyr por "via negra" para compor o título, em contraste com a ambiguidade presente no poema, convidou à reflexão. "Via Negra Nº 4" revelou-se, assim, como um espaço de múltiplas interpretações, onde a afirmação e a negação se encontram. Poderia ser um caminho de autodescoberta, uma busca por identidade, ou um espaço de resistência? A resposta permanece em aberto, convidando-nos a refletir sobre a complexidade da experiência humana.
Ao folhear as páginas da Hera, deparei-me com um universo poético rico e complexo, onde a "via negra" revelou-se como um espaço de múltiplas interpretações. A expressão evoca tanto a experiência individual quanto a coletiva, convidando-nos a refletir sobre a memória, a identidade e a resistência, temas que se entrelaçam na trajetória humana. E nós, pessoas leitoras, somos convidadas a percorrer essa via, a desvendar seus mistérios e a construir nossas próprias interpretações. Até a próxima edição do "Folheando a Hera".
A coluna Folheando a Hera é reflexo de uma jornada poética e pessoal percorrida por Dee Mercês pelas páginas da revista Hera, em busca de inspiração, reflexão e conexões com o presente. A cada edição, um novo poema, um novo mergulho no passado e um convite para reler a história e a nós mesmos.
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