Stefani Silva, uma jovem de 22 anos, lésbica, natural de Guanambi e moradora de Mutans, está cursando Letras. Ela compartilha poesias críticas em eventos e contribuiu para três antologias. Acredita que a poesia a salvou e busca utilizar o poder transformador das palavras para um mundo mais consciente e uma alma mais tranquila.
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Quando o Poema Atravessa o Peito: três poemas de Stefani Silva
(Sem título)
dois dias sem remédio e já me sinto assim
o que me sustenta é o vácuo entre você e eu
já não sei qual a faca que dividiu a mim
ou em qual estrada minha alma se perdeu
não sou a versão que alguém esperava
tampouco a que quero ser
eu desprezo mentiras mal contadas
odeio voltar e ainda encontrar você
nada me agrada, não pude ser anjo
pois eles sempre cortavam minhas asas
não pude ser santa, nunca me arranjo
pois me perco na noite e não volto pra casa
sou muito libertina
encurvo as grades
ovelha negra da família
eu gosto do alarde
não fico em prisão
eu amo meninas
sigo na contramão
não paro em esquinas
não olho pros dois lados da rua
o acaso me protege
os olhos me mastigam crua
a inveja me persegue
minha carne é pecadora
implorei pra ir embora
me jogaram álcool e fogo
me cuspiram para fora
me disseram: se arrependa
retruquei: mas não fiz nada
"então não tem volta"
e foi assim que decidiram meu destino entre enxofre e revolta.
(Sem título)
A voz quase não se escuta
a música ensurdece o ambiente
conversas paralelas que convencem os ouvidos
as pestanas caídas, sonolentas, dormem em meio sono
prontas para despertar a qualquer sinal de perigo
o céu nublado ameaçando chuva
a surpresa irônica que já sabíamos aparece súbita
zumbindo uma moto, um carro, um caminhão
adultos conversam entre si, unidos, outrora desunião
vitória alegria e euforia ligam pessoas
o tempo, o verde e a brisa enganam
inexplicável cheiro que sobe e causa ânsia às narinas
o cinza que enxergam os olhos é insuficiente pra convencer a desistência
a cantoria do outro é catarse pra mim
a tristeza que um dia abrigou outro corpo
hoje, solidariza com a minha
o veneno de uns talvez seja remédio de outros
ferida e cura habitam em mim. sou eu.
o verde a serra o cheiro de chuva o vento a janela aberta o cabelo que balança o rosto que relaxa o corpo que descansa a água o solo as nuvens o poder olhar além do capitalismo que rouba nossas almas. isso é vida: poder olhar e sentir o tempo, as pessoas e as coisas devagar e com leveza.
as provas podem esperar. felicidade tem de ser tangível
e possível.
o desespero impaciente me mostra que cresci
a estrada
é como eu via nos desenhos.
(Sem título)
E eu conseguia enxergar um corpo sem vida -culpa minha- deitado na minha cama, esse ser inerte, fedendo a pecado, se decompondo, olhos ainda abertos, como se pudessem ainda eles enxergarem algo.
Me assustei ao ver o cadáver, gritei por ajuda, implorei por socorro, mas os outros tinham seus próprios cadáveres para se preocupar.
O estranho é que me sinto tão assustada porque apenas no meu quarto, sozinha, é que esse corpo morto me persegue. Lá fora é tão azul, meus amigos me parecem tão reais, minha família tão unida... Mas, por que apenas no meu quarto que esse defunto me persegue? Sou uma assassina, sou a única culpada por interromper a vida desse pálido ser que outrora foi rosado.
Sabe o que me dói? É saber que não fui responsável por um homicídio. Foi suicídio.
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Quando o poema atravessa o peito é uma coluna semanal de poesia brasileira contemporânea com curadoria do poeta baiano Gustavo Anjos e edição do poeta Dee Mercês. A coluna destaca poetas em ascensão ou com trajetórias estabelecidas, tanto na Bahia quanto em todo o Brasil.